Com aumento da fome, sociedade se mobiliza para atender vulneráveis

São Paulo (SP) - ESPECIAL - Ação do Coletivo Banquetaço em 27 de fevereiro na cidade de Mauá, na Grande São Paul - Foto: Coletivo Banquetaço/Divulgação

© Coletivo Banquetaço/Divulgaçã

Entidades acreditam que têm papel importante na construção de soluções

Por Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil – São Paulo

No final do mês de fevereiro, os irmãos gêmeos Wesllysson e Weslley, 21 anos, deixaram Itapeva, cidade que fica quase na divisa entre os estados de São Paulo e do Paraná, em busca de uma vida melhor na cidade grande. Ao chegarem na capital paulista, sem dinheiro algum, voltaram a se encontrar com uma velha conhecida da infância: a fome.

“Já ficamos quatro dias sem comer nada. Quando a gente estava lá em Itapeva e decidimos sair do mato e ir para a cidade, procurar alguma coisa para conseguir chegar em São Paulo, ficamos três dias sem comer, só bebendo água. Passar fome é horrível. É uma sensação horrível. É um jeito muito ruim na barriga. Ficamos meio tontos, dá preguiça, dá moleza no corpo. Você não consegue pensar direito. É ruim”, contou Weslley Santos Silva.

Mesmo destino encontrou Yara Angel Andrade Lucas, 20 anos, quando deixou a cidade mineira de Poços de Caldas e chegou à capital paulista. Até então, ela desconhecia a fome. “Depois que vim para cá é que conheci essa situação de rua”, contou à reportagem da Agência Brasil.

“Era difícil porque não conhecia esse fato de pedir as coisas. Não era um hábito meu. E começando a viver na rua, a gente aprende. Quando eu cheguei em São Paulo, eu passei fome, mas depois disso, não mais. É uma sensação horrível [sentir fome]. Você estar com fome e não conseguir pedir ou ter vergonha pelo fato de estar naquela situação, isso mexe com nosso sentimento”, explicou.

“Depois, quando a gente recebe um alimento, é um alívio total porque a barriga doía, sentia dor de cabeça. Fora psicologicamente também porque passei por uma situação que não passava antes, de passar fome, que não passa pela cabeça de ninguém”, afirmou.

A cabeleireira Thais Oliveira Cavalcante, 31 anos, moradora da zona leste paulistana, se esforça para que seus quatro filhos nunca sintam a fome que ela vivenciou na infância. “Como eu já passei por isso, tentei ao máximo evitar que eles passassem também”, destacou.

Ela afirma que a vida ficou mais difícil e o dinheiro mais escasso durante a pandemia de covid-19, quando as pessoas deixaram de procurar o serviço de cabeleireira. O salário do marido era suficiente apenas para pagar o aluguel e despesas da casa que, inclusive, chegaram a ficar atrasadas. “Ele segurou o aluguel. Chegamos até a atrasar alguns [meses]”, contou. Mas os filhos [que tem entre 3 e 13 anos] não deixaram de comer nesse período.

“Dificuldade extrema não [tivemos]. Mas às vezes não conseguia comprar tudo e precisava da ajuda de alguém. Chega a ser humilhante, na verdade. A gente sabe que a gente deveria contar com a ajuda do governo já que a gente paga pra isso também. Só que, infelizmente, nem sempre a gente é ajudado. Então, a sensação é bem ruim, é de humilhação mesmo, de impotência”, destacou.

Wesllysson, Weslley, Yara e Thais tem uma história comum a muitos brasileiros: a experiência com a fome. Embora não estejam classificados no nível mais grave de insegurança alimentar, todos eles ainda enfrentam dificuldades e incertezas sobre o futuro. E esse universo é comum à maioria dos brasileiros. Apenas 44% da população brasileira se encontra atualmente em um nível de segurança alimentar, ou seja, com capacidade para se alimentar saudavelmente, podendo comprar os alimentos que quer e fazendo todas as refeições diárias – o que inclui ainda todos os membros de sua família.

“Há três níveis de insegurança alimentar: a leve, a moderada e a grave. A leve é uma família que tem alimentos, mas ela não tem segurança de que vai ter o alimento na próxima semana, por exemplo. A insegurança alimentar moderada é quando não se tem o suficiente para alimentar todos os membros da família, já tem alguma restrição alimentar seja do tipo de alimento seja na quantidade de refeições. O terceiro nível é a insegurança alimentar grave que é o que chamamos de fome, que é a família que não tem alimentos e consegue fazer, no máximo, uma refeição por dia – quando consegue. São famílias que todo dia acordam com dúvida se vão conseguir comer naquele dia”, explicou Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor executivo da Ação da Cidadania.

É nesse terceiro nível de insegurança alimentar que se encontram 33 milhões de pessoas hoje no país. “Essa situação é muito grave: é o pior estado de fome da história do Brasil. E, de fato, é algo que precisa de muita força política, mas principalmente, de mobilização da sociedade para que isso seja revertido em curto prazo”, disse Afonso em entrevista à Agência Brasil.

Sociedade mobilizada

Foi por meio de doações e de trabalhos que são desenvolvidos pela sociedade civil que Wesllysson, Weslley, Yara e Thais conseguiram se alimentar no período de maior dificuldade. Os irmãos, por exemplo, ao chegarem em São Paulo famintos, se depararam com um caminhão que fazia uma distribuição de comida à noite para moradores que vivem sob os viadutos na cidade de São Paulo.

“No primeiro dia em que chegamos aqui [em São Paulo], a gente nem sabia onde estava. Ficamos sem comer. Quando foi à noite, fomos para debaixo de um viaduto e tinha uma pessoa distribuindo comida de um caminhão. A gente estava desesperado de fome. Pegamos comida e comemos”, contou Weslley.

Após se alimentarem, eles tiveram forças para caminhar até a Paróquia de São Miguel Arcanjo, na zona leste, onde puderam encontrar uma figura que já conheciam pela televisão: o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Foi por meio do padre e do trabalho social que é desenvolvido na paróquia e em outros pontos da cidade que ambos conseguiram um trabalho como jardineiro e uma casa para morar.

Enquanto não iniciam o novo trabalho, eles vão fazendo suas refeições gratuitamente por meio de uma ação que é oferecida pela igreja. “Já passamos bastante dificuldade. Até maus tratos, quando a gente era menor, a gente sofreu. Passar fome é não ter o que comer em casa, às vezes trabalhar só para comer. Mas aqui [na paróquia] é comida boa, de verdade. Dão café da manhã, almoço, café da tarde e janta”, explicou Wesllysson.

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